sexta-feira, 30 de março de 2012

Os Deuses na Escola



Afinal, ler ou não ler a Bíblia na escola? Minha resposta é um enorme e forte “sim!”. Espantado? Não deveria um filósofo contemporâneo ser ou ateu ou agnóstico ou, ainda, plural e, então, pedir que junto com a Bíblia fossem lidos outros livros de outras religiões?

Há filósofos ateus. Não é o meu caso, pois eu não tenho buscas teológicas, as questões de religião, no âmbito da fé, não são questões para mim. E quanto ao pluralismo, também não tenho que defendê-lo nesse caso, pois não posso colocar no mesmo plano os textos de todas as religiões do mesmo modo que não posso colocar no mesmo plano a medicina chinesa e a medicina ocidental na escola, ou a física de Aristóteles e a de Newton. Durkheim nos ensinou que cada escola tem antes de tudo um respeito pela cultura na qual emerge e que tem a função de reproduzir, só secundariamente incorpora ou aponta vantagens (e desvantagens) de elementos de outras culturas. Dito isso, posso então falar positivamente da minha tese da Bíblia nas escolas.

A Bíblia é, junto com a Ilíada, a Odisséia (Homero) e a Teogonia (Hesíodo), base de nossa cultura moral. Ela é essencialmente um livro ético-moral, tanto para crentes como para não crentes, juntamente com os outros livros mitológicos citados. Nossas referências todas, para a construção da identidade de bípedes-sem-penas ocidentais, estão nesses livros, principalmente se acrescentarmos A República, de Platão. Ora, não temos pessoas na sociedade necessariamente voltadas para a castração dos livros de Platão ou dos livros da mitologia grega, mas não podemos dizer o mesmo em relação à Bíblia. Na nossa sociedade há quem busque ler a Bíblia de modo literal, mesmo que isso não faça sentido. Não podemos censurar essas pessoas, em geral os evangélicos (ou católicos pressionados pelo crescimento do mundo evangélico), pois vivemos em uma democracia liberal que garante a liberdade religiosa. Mas, a escola pública brasileira, que é laica, tem o dever de mostrar o lado mais culto da Bíblia para as crianças – as maneiras corretas de ler clássicos. A escola pública nossa, que é laica, republicana, não pode se omitir. E isso não em nome somente da preservação da cultura e do que nos dá identidade, mas também em nome do desenvolvimento cognitivo das crianças. Eu explico.

Crianças que aprendem a ler só de modo literal, sem entender o que são figuras de linguagem e o que são níveis e gêneros literários, não aprendem a ler corretamente. Tornam-se analfabetos funcionais ou, pior, ficam parecidas com limítrofes, pois começam a usar os textos sem perceber que eles possuem lugares de encaixe apropriados. Por exemplo: não posso ler o mito da criação como uma explicação científica ou mesmo como uma explicação tout court, pois lhe falta encadeamento racional. Explicação e compreensão, essas duas noções, exigem que as narrativas sigam ou por encadeamento racional e/ou por relações de causa e efeito. Não é o caso das narrativas míticas. Por exemplo: o mito da criação fala em Adão e Eva e não fala em mais pessoas, portanto, se Abel teve filhos, eles foram feitos com Eva? A Bíblia se cala. Você pode dizer: “ah, bom, Deus criou mais gente e isso não foi contado”. Essa é uma saída – mas é uma resposta tola. A melhor saída é esta: o mito é mito, não é um relato para explicar o surgimento do mundo do mesmo modo que é o relato do Big Bang e da Teoria da Evolução, porque o mito é, nesse caso, um conto moral. Você não precisa deixar de ser religioso para afirmar isso. Pois você pode muito bem acreditar que o conto moral é um presente divino para nós todos, de modo a nos fazer aprender o ethos que devemos seguir. Isto é, você não precisa acreditar que Deus lhe deu um presente cujo gênero literário é o da explicação, porque Deus simplesmente optou por lhe dar um presente bem melhor, algo do âmbito da ética, um texto com lições normativas. Tomando o mito da criação como uma história moral, você pode tirar dele o que ele quer ensinar. Por exemplo: quer ensinar que os homens não devem se achar deuses só porque são mais poderosos que os animais, eles, os homens, não devem querer comer da “árvore do conhecimento”. Ora, por que ler assim? Por uma razão simples: as outras religiões também possuem mitos cujo sentido é parecido. No mito grego isso também aparece: Prometeu é um deus que entrega o fogo aos homens, algo que Zeus não queria que ocorresse porque dava ao homem a sensação dele possuir os mesmos poderes dos deuses. Toda religião tem esse ensinamento: que o homem entenda suas limitações, para não fazer bobagem consigo mesmo e com os animais e tudo o mais. Isso pode ser ensinado na escola, protegendo a cérebro infantil daqueles que querem fazê-lo perder essa capacidade de interpretação.

Agora, se a criança é criada e educada em um ambiente em que os textos só possuem uma interpretação, isso é ruim. Mas, se as crianças crescem num ambiente em que os textos não somente só possuem uma interpretação, mas tal interpretação é não racional, aí a coisa piora bem. No primeiro caso, gera-se alguém que poderá ser um adulto dogmático. No segundo caso, dá-se abertura para gerar um imbecil. Não perceber a diferença entre o que é uma narrativa racional e o que não é uma narrativa racional não é algo inato, é aprendido. Nesse sentido, a criança presa ao lar evangélico, que a faz ler a Bíblia buscando explicação em textos que não foram escritos para explicar e, sim, para dar caminhos morais, pode adquirir sérios danos cognitivos. Essa prática pode gerar o adulto que se imagina culto e, no entanto, ao agir e falar, será ridicularizado no meio culto, ou simplesmente será tomado como “café com leite”. Trata-se daquela pessoa que não entende as distinções e finalidades dos discursos, os gêneros literários distintos e o papel das várias retóricas em cada narrativa. Pessoas assim começam a não perceber que são burras e, no entanto, são burras. Os cultos e inteligentes as desprezam. Elas começam a ter dificuldades em lugares em que a cultura não foi posta no lixo. E então, ficam ressentidas, magoadas, de mal com a vida. Algumas dessas pessoas tendem a se tornar vingativas, más, exatamente porque não sabem a razão pela qual estão sendo colocadas de lado. Eis aí o quadro maligno: uma nação em que há enormes grupos se sentido assim, não pode ir bem e a democracia começa a correr riscos. John Dewey temia como ninguém que a América seguisse esse caminho.

Assim, até mesmo para que não tenhamos riscos para a democracia, deveríamos ler a Bíblia na escola, por meio de um profissional competente, alguém que tivesse cultura suficiente para pegar o livro como um belo livro de ética. É certo que é uma ética dos Hebreus, mas é uma ética que, com Jesus e, depois, efetivamente com Paulo, se pretendeu universal. E tornou-se universal para o Ocidente.

Você pode ainda objetar: “mas Paulo, a escola pública laica está um lixo, encontrar bons professores para fazer isso é impossível”. Ora, em tese seria este um serviço do professor de filosofia, ajudado pelo de história, não? Não podemos, em tese, partir da idéia de que não temos professores e, portanto, ficarmos de braços cruzados e não encaminhar o que é o correto. Temos de ir tentando fazer as coisas certas, enquanto que, por outro lado, vamos brigando para que o salário da carreira do magistério aumente de modo que os mais inteligentes queiram optar pela vida de professor. Não creio que isso seja impossível. Não acho que essas coisas devam ser postas separadamente. São lutas contínuas e conjuntas. É a nossa vida, é o que temos e vivemos. Não vamos fugir. Não há para onde fugir.

Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor e professor da UFRRJ.

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